segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Futuro hipotecado

Folha de São Paulo
06/09/2010
Maria Inês Dolci
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Dispor do imóvel é risco maior que o necessário; hipoteca é palavrão que não deveria ser pronunciado
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HIPOTECA é uma palavra pesada, cortante e vinculada a pesadelos, à dificuldade de dormir, porque a pessoa tem uma dívida associada a um bem, hipotecado em garantia do empréstimo.
Deveria ser a última opção, usada, em situação de extrema dificuldade, para obter recursos necessários ao combate de uma doença grave, de uma falência financeira que comprometesse o futuro da família.
Um novo mundo, contudo, tem significados diferentes para velhas palavras, como essa, que, segundo o dicionário "Houaiss", já é conhecida há mais de 600 anos.
Hoje, leio abismada que se hipoteca a casa, no Brasil, para consumir. Por que alguém cometeria uma loucura dessas -arriscar-se a ficar sem imóvel para contrair um empréstimo? Pelo que se saiba, para pagar taxas de juros bem menores, com prazos de 20 a 30 anos.
Essa operação financeira tem crescido vigorosamente nos últimos anos, em alguns casos para subsidiar novos empreendimentos, como uma franquia.
E, entre as instituições que trabalham com esse, digamos, empréstimo, está uma pública, a Caixa Econômica Federal. Estamos mesmo numa economia movida a dívidas!
Contrair um financiamento habitacional, esgotadas as consultas e comparações entre as condições oferecidas pelos bancos, já não é tarefa simples. Trata-se de um compromisso por muitos anos.
Não há como mapear o futuro e dizer, com certeza, que teremos emprego e renda suficiente para bancar o financiamento. Mas, concedamos, esse é um investimento importante na vida das famílias -um lugar para morar, um teto que nos proteja das intempéries.
Nem sempre será um investimento, no sentido financeiro da palavra.
Teremos, contudo, uma moradia própria, evitando os gastos com aluguel, que, sujeitos a oscilações de mercado, não "comprarão" parcelas de um imóvel. Tem a ver mais com segurança e com vontade de ter algo em nossos nomes.
Dispor de um bem assim, adquirido com dificuldade na maioria dos casos, parece-me um risco maior do que o necessário.
Vejamos, por exemplo, um imóvel cuja hipoteca banque o investimento em uma loja franqueada. Por mais forte que seja a marca da loja, o sucesso de vendas dependerá da habilidade do franqueado. Planejamento, trabalho e dedicação são tangíveis. Tino comercial e clima econômico são intangíveis.
Se não der certo, haverá o perigo de perder um imóvel quitado, pois a operação, no Brasil, é feita com imóvel já pago, para evitar o "subprime" norte-americano, que tem alta probabilidade de calote.
Argumenta-se que a economia brasileira só cresce, nos últimos anos, devido ao aumento do crédito e que é necessário ser criativo, inventar novas formas de permitir o acesso ao consumo.
Tenho minhas dúvidas. O crédito consignado aos aposentados transformou-os em fontes de recursos para familiares e amigos não tão escrupulosos. O ideal seria aumentar a renda dos idosos com pensões e aposentadorias mais próximas do custo de vida efetivo.
Financiamento não é renda. É uma forma de facilitar o acesso a bens e a serviços mais caros pelo prolongamento do período de pagamento. Em países com taxas de juros absurdas, como o nosso, o risco de inadimplência é muito maior, ainda mais se considerarmos os baixos salários.
Não saberemos o final dessa história tão cedo, pois os empréstimos são de longo prazo. Inicialmente, as prestações costumam ser compatíveis com a renda.
Temo, porém, que, em alguns anos, comecem a estourar as dívidas escoradas nos imóveis e que, consequentemente, cidadãos percam seus únicos bens pela ilusão do dinheiro rápido, sem burocracia.
Se imaginarem que a Justiça os protegerá, releiam as reportagens publicadas nos últimos dias sobre os poupadores que perderam rendimentos por causa dos planos econômicos do passado.
Hipoteca é um palavrão que não deveria ser pronunciado nem utilizado em vão.
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MARIA INÊS DOLCI , 54, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores. Escreve quinzenalmente, às segundas, nesta coluna.

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