segunda-feira, 7 de junho de 2010

Crédito acentua prejuízos na bolsa

 Valor Econômico

07/06/2010

 
 

O entusiasmo de investidores e corretoras no auge da euforia do ano passado está custando caro em meio à nova fase da crise financeira internacional. Um produto que se tornou relativamente comum em pessoas físicas contribuiu para ampliar as perdas com a queda de 8,3 % da bolsa no mês de maio: a conta-margem, um tipo de crédito usado exclusivamente para compra de ações.

 
 

Único tipo de empréstimo permitido às corretoras de valores, a conta-margem só é concedida com garantias (ações de primeira linha) correspondentes a 140% do valor emprestado. Ou seja, só pode tomar crédito o cliente que já tem ações em seu nome. O crédito é exclusivo para compra de ações que fazem parte do índice Bovespa - o uso para operações nos mercados futuros, a termo e de opções é proibido. Os deságios das ações depositadas em garantia e dos papéis comprados com o crédito são determinados pela Câmara Brasileira de Liquidação e Custódia (CBLC). É exclusiva para compra de alguns papéis de primeira linha determinados pela CBLC.

 
 

O crédito (ou alavancagem, no jargão de mercado) amplifica ganhos em momentos de alta do mercado, e por isso foi usado pelas corretoras para conquistar clientes na fase de alta da bolsa. Tomemos como exemplo um cliente com R$ 40 mil em ações que tome emprestados R$ 20 mil para compra de outros papéis. Se a carteira subir 20%, o cliente ganhará R$ 8 mil com o próprio dinheiro e R$ 4 mil com o dinheiro emprestado. Ou seja, aumenta seu lucro na bolsa em 50%. Se pagar juros de 1% pelo empréstimo, terá um lucro líquido de R$ 11,8 mil (descontando R$ 200 do custo do crédito) e elevara seu patrimônio de R$ 40 mil para R$ 51,8 mil.

 
 

Mas o efeito amplificador é desastroso se o  mercado cair. Na hipótese inversa, de perda de 20% na carteira própria e na carteira financiada, o investidor perde R$ 8 mil em capital próprio e R$ 4 mil na carteira financiada, tem de pagar à corretora R$ 20,2 mil pelo crédito (incluindo juros) usado para uma carteira de ações que vale apenas R$ 16 mil. Seu capital cai de R$ 40 mil para R$ 27,8 mil. Se não tomasse o crédito, seu patrimônio cairia para R$ 32 mil.

 
 

Se as ações da carteira própria caírem abaixo de 140% do valor do crédito (no exemplo em questão, isso só aconteceria se a parcela de ações comprada com dinheiro próprio caísse abaixo de R$ 28.280), o cliente é obrigado a depositar mais garantias ou liquidar imediatamente a linha de crédito.

 
 

A corretora é obrigada a fechar a conta devedora, vendendo as ações se for preciso, em até dois dias úteis. Essa é uma exigência do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), para evitar acúmulo de prejuízos fora de controle e riscos sistêmicos que afetem a liquidação de operações no mercado de capitais.

 
 

Em tempos de bonança, ninguém reclama dos lucros com alavancagem. Mas na crise os investidores se surpreendem com o potencial destrutivo do crédito e reclamam aos órgãos de regulação, como a CVM e a Bovespa Supervisão de Mercado (BSM) para tentar reaver pelo menos parte dos prejuízos. As reclamações ocorrem quando a corretora zera compulsoriamente as posições dos clientes. Muitas vezes o cliente discorda da decisão, embora não tenha dinheiro para aumentar as garantias.

 
 

O número de reclamações contra as corretoras na BSM, órgão de autorregulação da bolsa, e na CVM disparou desde o início da crise financeira internacional Em 2008, foram 143 reclamações à bolsa, mais que o triplo das 47 do ano eufórico de 2007. No ano passado, houve 134 reclamações. "Naturalmente, crescem as reclamações quando o mercado está em baixa. O cliente não reclama quando está ganhando dinheiro com a alavancagem. Quando perde, recorre ao fundo da bolsa para tentar recuperar prejuízos", afirma o diretor da BSM, Luís Gustavo da Matta Machado.

 
 

Não há dados precisos sobre o número de reclamações que se referem a contas-margem. No ranking da BSM, erros em operações de agentes autônomos são líderes (30%), seguidas por problemas com operadores ou sistemas de home broker, com 20% cada um. A CVM está atenta ao assunto. "Estamos acompanhando os casos e mandando alguns deles para apuração da BM&F-Bovespa Supervisão de Mercados", afirma o diretor da CVM Otávio Yazbek. Por enquanto, a autarquia não planeja regulamentação específica sobre o assunto, mas acredita que a oferta de empréstimos de alto risco para investidores que conhecem pouco o mercado poderia ser enquadrada na nova resolução que tratará da adequação de oferta de produtos financeiros ("suitability"), cujo texto está em elaboração pela CVM. A nova regra substituirá a atual Instrução 387.

 
 

A Valor Investe localizou alguns investidores que reclamaram à CVM de prejuízos amplificados pelas linhas de crédito. Aparentemente a conta-margem foi usada como arma de marketing por corretoras interessadas em ganhar espaço entre as pessoas físicas, que acreditavam ter encontrado uma maneira fácil de ganhar dinheiro. Algumas corretoras mais agressivas na conquista de clientes do varejo e várias focadas em home broker anunciam a conta-margem com mais estardalhaço em seus sites. Alguns textos promocionais chegam a comparar a conta-margem a um cheque especial.

 
 

Um exemplo é o do jornalista Oswaldo Zágue, de 43 anos, que reclamou contra a corretora TOV na CVM em fevereiro deste ano. Zague, morador de Campinas, interior de São Paulo, operava com ações pelo sistema de home broker e tinha R$ 55 mil em capital próprio alocado em ações da Petrobras. Utilizava crédito para compra de ações e programava ordens automáticas de compra de ações da Petrobras, dependendo do preço. Zague diz que saiu de férias por 40 dias e não entrou na sua conta na corretora durante este período. Em sua ausência, as ordens automáticas de compra foram disparadas com recursos da conta-margem, e Zague chegou a ter 1.200 ações financiadas. Logo depois da compra, a posição financiada com crédito já acumulava prejuízo superior a R$ 10 mil, com a queda entre R$ 4 e R$ 5 na cotação da Petrobras. "Fiquei fora 40 dias. Quando voltei, vi que eles tinham mandado emails avisando do prejuízo e cobrando a liquidação, mas nunca ninguém me ligou nos telefones que estão no meu cadastro", reclama o jornalista, que diz ter ficado devedor da TOV em R$ 30 mil. Zague reclamou sem sucesso na corretora e resolveu reclamar à CVM. Ainda aguarda a avaliação do órgão regulador sobre seu caso.

 
 

O diretor da TOV, Jamil Farath, afirma que nenhum cliente recebe limites na conta-margem sem antes assinar um contrato estabelecendo as condições. "O problema é que muita gente não lê os documentos que assina. O que eu posso fazer se o cara compra um carro e não lê o manual?" O diretor da TOV afuma que, apesar de ter 12 mil clientes ativos, não mais que 200 têm conta-margem, e não há concessão automática. Farath diz que a corretora acompanha o risco dos clientes e procura alertá-los para ajustar posições antes que as garantias batam no limite mínimo. "Não podemos forçar o cliente a mudar a posição ou fazer a zeragem antes, mas procuramos orientá-lo." No dia 25 de maio, que amanheceu nervoso nos mercados com a tensão entre a Coreia do Sul e Coreia do Norte e intervenções em bancos estaduais espanhóis, Farath ordenou que os operadores alertassem os clientes para redução de risco em suas posições.

 
 

Sem comentar casos específicos, a CVM acredita que há sinais de que algumas corretoras foram agressivas demais no crescimento, ocorrido durante momentos de mercado em alta, como no ano passado, com a forte recuperação depois da crise financeira originada nos Estados Unidos. "Acho que o uso indiscriminado da conta-margem pode ser o sintoma de um fenômeno maior, de concorrência predatória entre as corretoras", diz o diretor da CVM Otávio Yazbek.

 
 

Embora descarte uma regulamentação específica, Yazbek acredita que as corretoras terão de se preocupar mais com a adequação de seus produtos aos clientes com a nova norma de "suitability". O texto deve prever que as corretoras definam perfis de risco de cada cliente. O sistema deverá alertar sempre que o cliente fizer operações inadequadas ao seu perfil. "Claramente, esse empréstimo é uma modalidade inadequada a investidores iniciantes em bolsa."

 
 

O diretor da BSM diz que os investidores que pedem ressarcimento de prejuízos ao fundo da bolsa usam justamente o argumento de inadequação das operações que geraram as perdas. "O investidor sempre diz que não tinha idéia do risco de perda em contratos a termo e opções e que é conservador, só compra ações da Vale e Petrobras no mercado à vista", diz Matta Machado. Mas, em geral, uma investigação da bolsa do padrão de operação dos clientes nos meses anteriores mostra que muitos investidores já vinham operando com termo e opções, por exemplo, e ganhando dinheiro. Só reclamam da inadequação depois da perda, e por isso a bolsa não dá razão ao reclamante. A nova instrução da CVM deixará mais claros os padrões de risco assumidos pelos clientes e ficará mais fácil punir a oferta de produtos inadequados, acredita o diretor da BM&FBovespa.

 
 

Também têm sido comuns, segundo Matta Machado, problemas derivados de uma expansão descontrolada das corretoras, como lentidão na execução de ordens em home broker ou demora na transferência de custódia. "Isso são sinais de uma expansão sem o investimento necessário para suportar um volume maior de negócios", afirma o diretor da BSM. Quando autorizou a corretora Icap a cadastrar novos clientes pela internet, pelo fato de a subsidiária do grupo inglês ter apresentado complexos mecanismos de validação da informação que davam segurança ao cadastro, a CVM se viu invadida por uma enxurrada de ligações de corretoras querendo eliminar os cadastros tradicionais pelo preenchimento de um formulário simples pela internet, "Na época, deixamos claro que os mecanismos mais flexíveis dependem da estruturação de controles internos adequados", afirma o diretor da CVM.

Nenhum comentário:

Locations of visitors to this page